11/11/2006

Colonialismo em greve

[Pensei inicialmente comentar o texto abaixo após a sua integral transcrição. Mas a densidade de disparate é tal que não o consegui. Vou comentar por blocos. A integralidade do texto, mantém-se.]

No Abrupto, pode ler-se:


O que me choca mais neste momento de contestação, é a reacção de uma parte significativa da população que tem sido ouvida nos órgãos de comunicação. Para lá de qualquer possível estratégia de apoio ou contestação à greve, é inegável que cada vez mais pessoas são contra as greves.

O autor começa por confundir a greve em causa com [todas] as greves. Dar-se há o caso de supor gozar do monopólio ao exercício desse direito?

Uma das razões mais apontadas para esta posição é a ideia de que os funcionários públicos são privilegiados, têm emprego garantido, salários altos, e reformas boas. Bem, a questão das reformas, agora que são aos 65 anos e foram reduzidas em valor, já não se ouve tanto. Mas a ideia de que há funcionários a mais, de que estes não trabalham, ou que trabalham mal, e que ganham de mais, é muito generalizada.

Ainda bem que o autor percebe que a questão da idade da reforma tem vindo a atenuar a contestação. Mas aproveita para não se manifestar em relação à justeza de igualdade de direitos entre uns e outros.

Porque me chocam estas opiniões? Porque revelam um desconhecimento enorme da realidade. Da realidade dos funcionários públicos, dos serviços públicos e da sua organização, e dos direitos dos trabalhadores. Essas pessoas que acusam, a meu ver injustamente, os trabalhadores da administração públicos de tudo o que consideram mau, são em muitos casos, as mesmas que aceitam trabalhar em más condições, com salários muito baixos, e com poucas ou nenhumas regalias sociais. Desta forma, tendem a conceber os direitos sociais como privilégios. Isto é muito preocupante...

Não será o autor quem está desajustado da realidade?

Tem ainda a lata de acusar as tais pessoas de aceitarem trabalhar em más condições? E o autor estará à espera de compreensão pela parte por quem ele tem em tão pouca consideração? E não suporá ele que esses tais inimigos sentirão que as regalias que ele reclama estar a perder já há muito (se alguma vez as teve) as perdeu?

... "e com salários muito baixos" ...!!! Então, e parece-lhe de esperar o apoio de quem tem salários muito baixos a quem os tem substancialmente mais altos (a premissa é dele)?

... "e com muito poucas regalias sociais" ... !!! E já passou pela cabeça do autor que isto soa ao seu inimigo como um acerto de contas (finalmente)? E porque haveria quem tem poucas regalias de defender quem tem muitas (a premissa é dele)?

Na medida em que revelam um pessimismo generalizado, uma inveja latente, uma noção de que os direitos são privilégios e não direitos, de que todos devem sofrer como eles sofrem, estas opiniões são perigosas.

Na medida em que o autor revela não ter percebido que às suas regalias corresponde a nossa miséria, que os seus direitos são simples privilégios e que estes não devem ser conseguidos à custa do trabalho de outros, que a forma de encarar o mundo defendido pelo autor do texto bem podia ter sido desenterrada do feudalismo.

Não para os funcionários públicos, que parecem estar condenados a continuar a perder poder de compra e direitos, mas para a generalidade dos trabalhadores por conta de outrem. Isto revela uma submissão e uma subserviência ao poder económico, que acaba por se generalizar e diminuir, se não extinguir, direitos que eram considerados, até há pouco tempo, fundamentais.

E agora o autor confunde a generalidade dos trabalhadores com a generalidade dos trabalhadores!. Queixa-se que a forma como a generalidade dos trabalhadores (pressupondo-se que em oposição aos funcionários públicos) encara a coisa, vai de encontro ao interesse da generalidade dos trabalhadores ... ou então à generalidade de trabalhadores deveria corresponder uma generalidade de direitos e deveres, coisa que ele não dá de barato.

E depois a história da submissão ... como se a generalidade dos trabalhadores não aparentasse estar cansada de demonstrar subserviência e submissão aos interesses e direitos que ele supõe serem fundamentais, mas que eles percebem serem apenas apanágio da classe dele.

Não me parece ser este um bom caminho. Puxando os funcionários públicos para baixo, toda a sociedade portuguesa vai ser puxada para baixo, e vamos assistir, já estamos a assistir, a um aumento da diferença entre ricos e pobres, ou seja, ao enfraquecimento das classes médias. Isto é mau para o colectivo, por bom que seja para os empresários, proprietários de riqueza e de bens de produção.

Já percebemos. Há uns, malandros, muito ricos, e a quem ninguém consegue beliscar. Mas nós, imbuídos de um inoxidável espírito altruísta, queremos atenuar essa desigualdade tornando-nos mais ricos à custa das classes mais pobres a quem, por estratégia momentânea, metemos no mesmo caldeirão e chamamos agora de "classe média", esquecendo-nos que os tínhamos à pouco acusado de serem uma espécie de bandalhos incapazes de reclamar direitos.

Será que vamos ser todos empresários? Será que vamos todos ter empregados a trabalhar para nós, e a quem vamos pagar o mínimo possível?

Mais uma vez a hipocrisia leva a melhor. O mesmo povo que tem um dos índices mais altos de posse e utilização de telemóveis, e de outros bens não essenciais, reclama agora uma justiça social nivelada por baixo, como se isso fosse bom para todos. Hiprcrisia perigosa, digo eu, porque vai calcar ainda mais o nível de vida dos portugueses, de todos, incluindo os funcionários públicos. Será que os não-funcionários públicos ganham alguma coisa com isso? Tenho a convicção que não, mas ficam felizes com esta vingaçazinha, do português "toma lá que é para não pensares que és melhor que eu...eu estou mal mas tu também ficas."

(Fernando Reis)

Que pena que o autor se tenha esquecido de declarar solidariedade para com os que além de terem menos direitos contribuem para os direitos que ele quer manter.

Direi: toma lá que é para deixares de pensar que és melhor que eu... que eu estou mal mas apenas por ser bandalho. Eu, que te pago metade dos proventos do meu trabalho e que ainda por cima sou visto como um inimigo a abater.

Há muito que não via tamanha manifestação de espírito colonialista. Pessoas capazes de supor que o funcionário não público é uma espécie de escravo e a quem, perante valores superiores, até a posse de telemóvel poderá ser posta em causa para permitir que mordomias coloniais sejam mantidas. Só Salazar era capaz de o defender: pobrezinhos, mas limpinhos.

Quantos funcionários públicos se reverão nas palavras dele? E, onde estão os repúdios?

Irra, que é bruto.

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