O Presidente da República (PR) só podia tomar uma de duas decisões: ou permitia a formação de novo governo baseado na presente configuração da Assembleia da República (AR), ou dissolvia a AR, convocando eleições. Decidiu-se pela primeira.
Eu, pessoalmente, pendia entre as duas. Se, por um lado, me parecia que a segunda opção poderia resolver mais definitivamente o problema, por outro suspeitava que a primeira teria o mérito de não deixar que este jardim à beira-mar plantado viesse a cair numa guerrilha institucional permanente de cada vez que uma eleição, ou mesmo uma sondagem, não resultasse de feição a quem quer que fosse que se encontrasse no poder em determinado momento. Nessa altura o precedente criado pela dissolução do parlamento iria dar largas à mais desbragada, intempestiva, folclórica e populista reclamação de legitimidade de exercício do poder.
Não posso avaliar o que poderia ter ocorrido se o PR tivesse decidido em sentido contrário, mas a verdade é a decisão foi tomada e é sobre ela que a história se poderá debruçar.
Nessa perspectiva estrebucharei um pouco sobre o efeito secundário mais imediato da dita decisão, a demissão de Ferro Rodrigues (FR).
FR reclamava eleições antecipadas porque a composição da AR já não espelhava a vontade do eleitorado e porque o apontado novo primeiro ministro não se havia apresentado para esse efeito nas últimas legislativas.
Claro que este tipo de argumentação tem uma razoável base de sustentação política (embora pouca formal), muito embora também a argumentação saída da maioria da AR proponente de suporte a um novo governo tivesse sustentação (talvez um pouco mais formal que política).
A verdade é que a proposta de dissolução, podendo ser a mais correcta face ao país real, é a que mais navega ao arrepio da constituição gerada pelos eleitos que o mesmo país real têm vindo a eleger. Isto aplica-se num ponto em especial: as eleições realizadas foram para o Parlamento Europeu e não foram legislativas.
Claro que se pode invocar que se fossem legislativas, o resultado seria o mesmo. Talvez, mas isso é adivinhação.
O problema é que, neste momento, face ao pedido de demissão de FR, quanto mais valor se der à argumentação que ele apresentou em favor de eleições antecipadas, mais valor se obtém a favor da posição contrária.
Contrariamente ao que me parece acharem a maioria dos portugueses, pareceu-me que a retirada de Guterres foi um acto de coragem, de quem percebe que tendo as coisas descarrilado substancialmente, e face ao cansaço dele próprio e à fatiga dos poucos que ainda não tinham debandado das suas fileiras (quando cheira a esturro os ratos fogem), a melhor solução para o país seria passar o poder a um governo de outra cor. Nada que não tivesse já acontecido anteriormente, nomeadamente com Cavaco, que saiu da vida política (pelo menos até ver) deixando o partido suficientemente armadilhado para garantir que as eleição seguinte transferisse o poder a outro partido político. Tanto no caso de Cavaco, como no de Guterres, foi um acto de coragem, de quem percebia ter as rédeas de um poder que se tornava contraproducente aos interesses do país e as larga, cedendo-as a quem mais energia tivesse para as agarrar.
Evidentemente que se tratava de as largar aos inimigos figadais. Mas quando se trata de transitar da oposição ao poder, os partidos têm inflectido bastante as posições que defendiam enquanto oposição para, de alguma forma, convergirem em função da uma política face ao país real e em detrimento de um país inventado para consumo oposicionista, como alavanca para colher chavões facilmente deriváveis dessa virtual realidade.
A dita “fuga” de Guterres, como, pelo mesmo prisma a “fuga” de Cavaco, não foi, para mim, mais que um acto de responsabilidade que se deve respeitar. Aliás, Guterres já contava com 6 anos de governação. Pode dizer-se que Cavaco não interrompeu o seu mandato, mas, Cavaco terá simplesmente sido salvo pelo gongue.
A fuga de FR é absolutamente incompreensível …
FR foge mesmo sem ter o desgaste da governação e desgaste nas suas fileiras (que nem chagaram a existir) … e os eleitos nas eleições para o Parlamento Europeu ainda nem sequer tinham aquecido a cadeira.
FR foge mesmo tendo do seu lado todo um eleitorado que nele teria, segundo argumentava antes de perder a causa junto do PR, votado de fresquinho.
FR foge quando se esperava que se mantivesse fiel aos que nele tinham recentemente votado.
FR demonstra não estar à altura (nem sequer tendo o fardo atenuado de oposição) de defender os seus eleitores.
As consequências são inúmeras ...
Até que se realizem novas eleições (e nem discuto de que tipo pois, para o PS, o facto das últimas europeias não serem legislativas não era problema), nenhum outro dirigente socialista poderá invocar as recentes eleições europeias como prova de legitimidade popular. Se Santana não tinha legitimidade política para ser primeiro ministro por nunca ter sido apresentado como pretendente ao cargo, qualquer outro futuro dirigente socialista ficará em idêntica posição, mesmo que como líder da oposição, tanto mais que se sentará na AR, em lugares de eleição directa (o primeiro ministro não é).
Nunca mais o PS poderá fulanizar este tipo de questões (coisa que, aliás, nunca devia ter feito), porque só o correr de muito tempo apagará o percalçozito. Caso contrário alguém lembrará que o PS é incapaz de reconhecer e manter a mais ténue ligação eleitor ao eleito porque este, no caso do PS, se poderá afastar logo à primeira dificuldade.
Imaginemos FR como primeiro ministro (longe vá o agoiro). Ao primeiro decreto chumbado pelo Tribunal Constitucional, lá se demitiria o sensível dirigente, como pétala de papoila.
…
A decisão do PR foi a correcta. Talvez o PR tenha decidido desta forma, não por vontade de que não houvesse eleições, mas por saber quão de pouca confiança era Ferro Rodrigues.
Em boa verdade o Partido Socialista devia fazer renunciar ao mandato os seus eleitos ao Parlamento Europeu. Quebrada a ligação do seu líder com o eleitorado, que legitimidade política tem os seus deputados? E que dizer dos deputados socialistas na Assembleia da República? Com que chapéu passarão a fazer oposição? Como justificar que o PSD, pelo afastamento do seu líder, tenha deixado de ter legitimidade suficiente, justificativa a dissolução da Assembleia da República, cujos deputados foram tão directamente eleitos como os do PS? De que direitos monárquicos da idade média pensa gozar o PS, que quer negar ao PSD?
O PR decidiu acertadamente. A direita nem sequer vai precisar procurar limar as suas arestas porque o Partido Socialista deu, voluntariamente, dois tiros em cada um dos próprios pés.
O PS precisa uma desinfecção generalizada porque começa a transparecer um ódio visceral que, cada vez mais, aparenta ter ao povo. Como monárquicos do século XXII, o PS parecer ter dificuldade em reconhecer o eleitorado como digno de qualquer espécie de respeito. Nesta matéria já pouco falta para ultrapassar o Bloco de Esquerda.
O PS e, em especial Ferro Rodrigues, ainda não percebeu que já nem a direita considera que o PR é “dos nossos” ou “dos deles”, e que há coisas resolúveis à canelada telefónica para este ou para aquele “dos nossos”.
Convém que o PS dedique os anos mais próximos a uma desinfestação interna simultânea com a retirada de esqueletos dos armários e seu envio ao ferro velho.
Convém que o PS não seja acometido da tentativa da travessia do deserto por avião. Ir a pé, neste caso, é o mais recomendável, para que possam readquirir alguma relação com a realidade.
Talvez tenha sido a mais difícil e acertada decisão de política interna que um PR jamais tenha tomado desde o 25 de Abril.
A oposição ficou, portanto, absolutamente manietada pela deserção de FR. A não ser que alguém ainda nutra alguma esperança pelo PC …
E esperemos não ser que a direita se espalhe completamente (estão lá todos os ingredientes para a hecatombe)… deixando um país caótico entregue a um caótico e derivante PS.
PS. Quando a Ana Gomes, tem sido tão incompetente como política quanto competente foi, como embaixadora, em Jacarta. Compreende-se as razões que a movem contra Durão Barroso o ao PSD face a espezinhamentos anteriores de que foi vítima, mas é contraproducente que um político paute a sua acção por ódios figado-viscerais, mesmo que contra George Bush.