29/09/2005

O preto e branco, a poesia e a fome.

A propósito deste excelente artigo, resolvi ranger um bocado.

[revisto]

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Quando é que a esquerda resolve reclamar o fim do proteccionismo à agricultura europeia?

As ajuda económica (dinheiro) a uma vaca europeia é superior ao que um pobre, do terceiro mundo, tem para viver.

Embora isto embarateça os produtos agrícolas ao consumidor final (à custa de impostos, evidentemente), não é mesmo assim suficiente para competir com o preço das eventuais exportações de países do terceiro mundo. Portanto, para aplacar essa possibilidade, há que aplicar taxas alfandegárias à entrada de víveres daqueles com quem os Live Aids dizem preocupar-se.

Os Live Aids não são, portanto, mais que um processo de tranquilização das próprias consciências invocando os maus da fita do costume - governos capitalistas, unilateralistas, etc, etc.

Nenhum governo europeu se atreve a defender o levantamento puro e simples do proteccionismo porque sabe que isso significará desemprego, abandono dos campos, etc, enfim, a eventualidade de se verem avançar campos de golfe.

Tudo se resume, portanto, a um dilema: ou comemos nós (os europeus) ou come o terceiro mundo.

Claro que pode haver nuances: percentagens de importação, etc. Mas disso a esquerda não gosta. Isso é navegar no cinzento. O preto e branco (como nos filmes) é mais poético. Poesia e fome (a dos outros) andam, pelas nossas paragens, de mãos dadas.

Nesta matéria, como noutras, a esquerda, que se parece cada vez mais com uma lagarta anafada (escolhi lagarta por similitude de inteligência), prefere alienar, à direita, suficiente campo de manobra para que seja esta a reivindicar a defesa dos pobres. Perante o facto consumado, e para a contrariar, a esquerda coloca-se rapidamente ao lado da extrema direita – proteccionismo, proteccionismo, proteccionismo, abaixo a globalização.

Surgem alguns com uma ideia ainda mais peregrina: alinhar com a globalização para, estando lá dentro, poderem controlá-la, leia-se “canalizar recursos para a Europa à custa do resto do mundo”. Mas os países (e empresas) que já estão (globalmente instalados) têm sistema nervoso central desenvolvido e não cairão na esparrela.

Voltando à poesia, que diria a isto Manuel Alegre?

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