10/10/2005

Televisão: a opção reles


Escreve João César das Neves, no DN.

Boa parte da programação dos canais generalistas, sobretudo SIC e TVI, é ordinária. Não está em causa a qualidade técnica, sofisticação de métodos ou pergaminhos dos participantes. É a escolha dos temas e atitude no tratamento que é boçal, rasca, estúpida. Mas, ao contrário do que se diz, tal não se deve a imperativos de sucesso ou exigências do público. É mesmo falta de talento dos produtores. A grosseria não vem do que os espectadores impõem, mas do que os autores conseguem.

Devo confessar que não falo por experiência directa. Há anos classifiquei esses programas na categoria de "lixo tóxico" e deixei de ver. Descobri, no entanto, que o poder da televisão se estende mesmo aos que a não vêem. Conversas de amigos e relatos de jornais fazem sentir a sua influência. Por isso sei que, mesmo ignorando nomes e desconhecendo pormenores, a descrição que se segue é justa e exacta.

Existem evidentemente rubricas e profissionais de qualidade. Mas no horário nobre, nos programas de grande audiência, dominam as opiniões idiotas, a brejeirice tonta, o disparate assumido, a gabarolice e vaidade, o sexo ou a simples alarvice. Novelas, concursos, shows e telejornais assumem que a imoralidade é popular, natural, recomendada. Adultério, aldrabice, fornicação, corrupção e malandragem são a dieta quotidiana da televisão.

Isto não é escolha do público, mas decisão dos canais. Claro que há gente que gosta de se espojar na lama, mas a maioria dos portugueses é composta de pessoas normais, que se sentem tentadas pelo prazer e elevadas pela sabedoria. A escolha está na televisão. A opção pela parvoíce, pornografia e aviltamento não vem do grande público, mas do pequeno produtor. A devassidão das séries juvenis não nasce de um deboche generalizado nas escolas nacionais, mas da depravação privada dos seus autores. Não é Portugal, mas o pequeno mundo da televisão, que faz germinar porcarias destas.

Outros países, e até o nosso às vezes, mostram bem como é pos- sível fazer programas populares de qualidade, como se pode ter, ao mesmo tempo, graça e interesse, sucesso e elevação. Mas, evidentemente, isso é impossível a autores sem valor, que se refugiam na asneira. O caso do humor é revelador. Perante uma sala, um comediante pode dizer uma piada inteligente e bem concebida, ou fazer uma alusão insultuosa ou obscena. Em ambos os casos ele arrancará, naturalmente, uma gargalhada. Se, por preguiça ou incapacidade, envereda pela facilidade, pensa "é mesmo disto que a malta gosta!".

À falta de talento junta-se, assim, o tradicional desprezo que as elites nacionais têm pelo povo. As televisões assumem que quem os vê é estúpido e bruto. Esse desdém pelo cliente sente-se, desde logo, no descuido com que os canais violam os seus próprios horários de programação. Mas o principal sinal está na opção arrogante pela indoutrinação da massa ignara. É curioso, mas triste, voltar a ver a atitude paternalista do salazarismo, agora com propósitos opostos.

Por exemplo, dizem-me que nestes meses vários concursos e novelas decidiram outorgar ao país um curso catequético completo sobre homossexualidade. Impondo os dogmas do género e elaborando as doutrinas da seita, querem apresentar essa visão como a única verdade aceitável. O pedantismo é o mesmo dos antigos programas do Movimento Nacional Feminino sobre lavores ou economia doméstica; a subtileza é igual à das Conversas em Família, de Marcelo Caetano. Só que sobre sodomia.

Que se pode dizer acerca disto? Que esta fase não vai durar muito. Num mundo aberto, o mau gosto raramente domina a totalidade. O deslumbramento libertário acabará por ceder ao enjoo, à reacção dos bons profissionais, à frescura da nova geração. Aliás, contando com a ajuda da tecnologia. A TV por cabo traz verdadeira liberdade e os programas aí têm de ser bons para segurar os subscritores. Com a penetração desta última, não tarda que os canais generalistas tenham de mudar. Senão passarão a meros canais temáticos da obscenidade.


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