20/12/2006

Cuba: amanhã cantante

Via Kontratempos:

No Pública:
«"Em Cuba vive-se mal e é preciso estar sempre a inventar para no final do dia ter o que comer", diz Luís, 46 anos, vendedor de frutas no Mercado de Quatro Caminhos em Havana. "Não sei o que vai acontecer aqui, ninguém sabe, mas tenho um filho com 20 anos e só queria que ele fosse para outro país, onde tivesse mais possibilidades." (...)»

«"Os que mais se devem preocupar são os altos dirigentes que vivem nas mansões mais luxuosas de Cuba arrebatadas às classes altas. Só Fidel Castro tem 57 residências espalhadas por todo o país. Fizeram de tudo nestes anos. Repartiram entre si o pouco que ia restando com entusiasmo de piratas." É no Vedado, parte nobre de Havana, que vivem os altos funcionários do Estado e se situam as embaixadas. Uma zona que contrasta com os edifícios velhos e degradados do resto da cidade, onde numa só casa chegam a viver quatro gerações de uma família. "Não penso que os cubanos do exílio estejam dispostos a entrar em conflito com os seus compatriotas por uns metros de barracas. Muita gente sabe já que as casas são tumbas provisórias." (...)»

«Com um ordenado mínimo que não chega aos dez euros, a "luta é grande", assegura Pedro, 53 anos, distribuidor dos correios. "Entre a compra de alguns alimentos e o pagamento da luz, pouco resta ao final de uma semana." As mercearias estão sempre cheias. De caderneta de racionamento na mão, os cubanos enfileiram-se à espera de adquirir os produtos subsidiados pelo Estado: arroz, feijão, açúcar, sal, ovos, azeite, café, carne e peixe. "Isto é uma ajuda, mas não chega. A verdade é que os salários são baixos e os produtos caros." Pedro vive com a mulher, educadora de infância, e as duas filhas numa casa muito degradada. As paredes têm rachas profundas e o tecto ameaça cair. Depois de sair do trabalho, Pedro arranja frigoríficos para "tentar ganhar mais algum" e "não passar fome". Uma actividade que "é ilegal", diz com um sorriso irónico. (...)»

«(...) Devido às restrições impostas pelas autoridades, hoje são poucos os que trabalham - de forma legal - por conta própria. À margem da lei, a realidade é outra. "Não há um cubano que não tenha o seu negócio. O Governo quer o quê? É a única maneira de sobreviver." A opinião de Pedro é partilhada por Raúl Rivero, para quem a solução é "liberalizar a economia". Ou seja: "Abandonar os mecanismos de controlo do Estado e retirar as mãos sujas das pandilhas de lerdos com cartão do partido que tudo dirigem com uma ineficácia que conseguiu manter a caderneta de racionamento desde 1964 até aos dias de hoje. Uma gestão de energúmenos que, em meio século, não conseguiu fazer com que o povo almoce com decência."»

«Com um apertado sistema de vigilância, o Governo de Fidel tenta evitar o contacto entre cubanos e estrangeiros. (...) Apesar do controlo, não raras vezes, há quem peça "uma ajuda". Qualquer coisa serve: sabonetes, pasta de dentes, roupa, comida ou um dólar "para comprar leite para os filhos". (...)»

«"O Governo de Fidel não quer admitir, mas o problema é que hoje há tanta ou mais prostituição e corrupção do que durante a ditadura de Batista", assegura Pedro. É ao final do dia, junto ao Malecón, que jovens de mini-saia e pronunciados decotes metem conversa com os estrangeiros. Convidam-nos para dançar e algumas, mais atrevidas, perguntam se não têm curiosidade em saber "como é que uma cubana faz amor". "No final", garante Pedro, "querem sempre o mesmo: dinheiro ou um convite para sair do país". Por ter a pele muito clara e o cabelo todo branco, Pedro já foi confundido com um europeu: "Se soubesse falar duas ou três palavras de inglês, até com uma menina de 12 anos ia para a cama." (...)»

«O carácter gratuito do sistema de saúde e educação tem sido uma das conquistas mais emblemáticas da revolução. O exemplo dos EUA - onde a medicina tem um preço elevado - é, aliás, sempre mencionado pelo regime. "O Estado diz-nos que somos os únicos no mundo a ter estes privilégios, mas esquece-se que sabemos pelos turistas que, em muitos países da Europa, a medicina e a educação também não são assim tão caras", afirma Rafael.»

«(...) "Se não há acesso nem a informação, nem a novas tecnologias, como podemos dizer que temos um dos melhores sistemas de saúde e educação do mundo?", questiona Carlos, 69 anos, antigo médico veterinário.»

«(...) Quase todos os cubanos participam em actividades de carácter político, como os Comités de Defesa da Revolução (CDR), as associações ou marchas. "Pode parecer que somos a favor do sistema, mas não temos outra alternativa", diz Carlos. "Por exemplo, se não se aparece para votar, no dia a seguir vêm perguntar-te por que não foste. As eleições são de mentira. Em nenhum lugar do mundo vota 98 por cento da população. Aqui não há liberdade."

O "Granma" e o "Juventud Rebelde" são alguns dos poucos jornais que circulam em Cuba. Cada um não tem mais de oito páginas e as manchetes exaltam os feitos do regime: a saúde, a educação, o desporto e a cultura. Os EUA são o alvo das críticas. Na televisão, há quatro canais oficiais, todos do Governo. A Internet só existe nos hotéis e está proibida aos cubanos. O acesso a livros também é limitado. O falecido Guillermo Cabrera Infante, escritor cubano exilado e Prémio Cervantes 1997, é praticamente desconhecido. Ou, então, lido às escondidas, como tantos outros.

Do mundo, na verdade, pouco se escreve ou fala. O que os cubanos conhecem é através do que lhes contam os turistas ou os emigrados quando visitam o país. "É difícil ter acesso a informação", confirma Rafael. "Há coisas que precisamos saber não só como cubanos, mas também como seres humanos. Os noticiários aqui só passam o que de pior acontece no mundo... É o que eles [os dirigentes do regime] querem que nós vejamos, o que lhes convém." "É um Estado que generaliza o temor e a desconfiança", explica Rivero. "Tem, além disso, a cumplicidade da maioria dos governos do continente que, para manterem calmas as suas esquerdas, tornam-se cúmplices de um ditador."

Durante cerca de duas décadas o jornalista exerceu a sua profissão em Cuba. Descreve assim a experiência: "É quase não viver. É sobreviver. Os jornais diários, a rádio e a televisão reproduzem máximas políticas desacreditadas. Alguns artistas, escritores oficiais e científicos têm correio electrónico através de um servidor do Governo vigiado pela polícia. Há carros russos ou chineses que patrulham as ruas com antenas para detectar sinais de televisão estrangeiros. Só os que servem o Governo é que têm acesso (também limitado) à Internet." (...)»

«Rafael e Javier, ambos músicos, são amigos. Fazem parte dos cerca de 70 por cento de cubanos que nasceram já depois de Fidel estar no Governo. Para eles, a revolução é "algo distante". Querem poder ter um telemóvel, aceder à Internet, comprar um carro ou viajar. E não entendem por que não podem visitar os "cayos" em Cuba (ilhas paradisíacas reservadas aos turistas) ou por que necessitam de uma "carta de invitación" de um estrangeiro (que tem de ser autorizada pelo Governo cubano) para conhecer o mundo. "Há coisas que nunca vamos aceitar", garante Rafael. "Aqui tentam pôr-te palas nos olhos como fazem com os cavalos", acrescenta Javier. "Conformados? Não. Estamos habituados, mas não conformados. Ainda temos esperança."»