29/07/2007

Vulcão sexual luso na intempérie da reestruturação soviética



De ler este post de José Milhazes.
O livro “Etna no vendaval da perestroika”, escrito por Miguel Urbano Rodrigues e Ana Catarina Almeida, despertou em mim uma grande curiosidade por duas razões.

A primeira tem a ver com a dedicatória: “aos portugueses que estudaram na União Soviética e permanecem comunistas” e a segunda prende-se com a afirmação em uma das capas: “é o primeiro romance português que tem por tema central o sismo político e social que destruiu a União Soviética”.

Quanto à dedicatória, fico de fora, porque estando entre os bolseiros que estudaram na URSS, não obedeço ao segundo critério. Porém, no que respeita à segunda razão, eu estive lá na mesma altura e, por conseguinte, posso falar com conhecimento de causa.

A descrição da chegada de um novato à URSS e das aventuras ligadas aos primeiros trâmites coincide com o que aconteceu com a maioria dos bolseiros quando chegaram ao “país dos Sovietes”.

Porém, a continuação do enredo provocou em mim enorme perplexidade. O grande número de orgasmos bem conseguidos por Etna, intervalados com citações de discursos e declarações de Mikhail Gorbatchov e de outros dirigentes soviéticos, trouxeram-me à memória as primeiras linhas do brilhante romance “As doze cadeiras”, dos escritos soviéticos Ilf e Petrov.

Peço desculpa por algum desvio, mas vou citar de memória: “Na cidade N. havia tantas barbearias e agências funerárias que se ficava com a impressão de que os habitantes dessa cidade apenas nasciam para cortar o cabelo e morrer”. Até parece que os bolseiros portugueses foram para a URSS aprender a atingir orgasmos supremos e, nos intervalos, liam os discursos dos dirigentes soviéticos.

Talvez para prestar tributo ao internacionalismo proletário, um dos fundamentos básicos do marxismo-leninismo, a heroína fez amor pela primeira vez com o português Francisco, mas depois atraiu e foi atraída por homens de outras raças e civilizações.

Mas é estranho que uma jovem revolucionária sexualmente tão activa, a ponto de fazer inveja a uma das maiores defensoras do amor livre: Alexandra Kolantai, não tenha feito amor com um representante sequer dos mais de cem povos e etnias que povoavam a URSS (cito a propaganda soviética).

Em geral, os soviéticos são seres raros neste livro que pretende retratar um dos períodos mais agitados da História da URSS. Uma colega de quarto ucraniana, a senhora anafada do Palácio dos Casamentos, o presidente do Kolkhose (unidade agrícola soviética) e o professor de História. Não me devo ter esquecido de muitos mais.

As aventuras “kama-sutristas” do vulcão sexual luso, fundamentalmente com homens de países oprimidos, trouxeram-me à memória uma reunião de militantes comunistas portugueses em Moscovo, no início de 1978. Joaquim Pires Jorge, nosso controleiro e representante do PCP junto do irmão mais velho, decidiu colocar na ordem de trabalhos a discussão dos namoros e casamentos de estudantes portugueses com estrangeiros, alertando para o perigo de se estar a assistir “a uma perda de quadros para a futura revolução portuguesa”. Se Etna tivesse participado nessa reunião, não se teria saído bem ...

A ausência de nativos soviéticos nesta obra e a presença maioritária de personagens estrangeiras levou-me a pensar que isso tenha levado à indevida interpretação da correlação dos factores dirigente-massas no período da perestroika soviética (1985-1991).

Etna tenta-nos convencer que Mikhail Gorbatchov conseguiu realizar, quase sozinho, aquilo a que se opunham a maioria dos dirigentes comunistas soviéticos e do povo, ou seja, a destruição da União Soviética. Um estudante que cursou História numa universidade soviética, que queimou muitas pestanas a decorar a História do PCUS, o Materialismo Histórico e Dialéctico, o Ateísmo e Comunismo Científico, apresenta-nos o decorrer dos acontecimentos, grosso modo, como uma operação planeada e realizada por Gorbatchov (claro que a CIA deveria estar algures) contra a vontade de “verdadeiros comunistas” como Vorotnikov, Ligatchov e Krutchkov e com a “passividade das massas”.

Tal como um “encantador de serpentes”, Gorbatchov conduz um bando de carneiros de tal maneira dóceis e ingénuos, que quase não reagem mesmo quando sabem que estão a ser conduzidos para o “matadouro”.

A Etna, talvez ocupada com outras coisas importantes, não viu as grandes manifestações de rua que se realizaram nos anos da perestroika, não participou, nem acompanhou as acesas discussões sobre o futuro da URSS, nem, embora historiadora, se interessou pelos numerosos documentos que foram então revelados.

Os organizadores do golpe de 19 de Agosto de 1991, reunidos no Comité para o Estado de Emergência, pensaram da mesma forma e esperavam que a sua conjura se iria cingir a um golpe palaciano, tal como fora derrubado Nikita Khritchov em 1964. Enganaram-se. As massas saíram para as ruas de Moscovo e de outras cidades soviéticas, pondo os dirigentes da conjura a tremer de medo ou talvez os tremores se devessem à ingestão excessiva de álcool. Basta recordar aquela famosa conferência de imprensa dos cinco "salvadores" da URSS que lhe deram o golpe de misericórdia.

Eu acompanhei os acontecimentos e posso testemunhar que nem todos os que vieram defender a sua liberdade nas ruas da capital russa eram agentes da CIA. Longe disso... Claro que se pode discutir se se concretizaram as expectativas desses milhares e milhares de pessoas, mas, nessa altura, acreditaram na sua força.

Mas este livro poderá ter um mérito, se provocar a publicação de outras memórias, de outros romances sobre a passagem pela URSS. Eu não me arrisco a isso, porque – e escrevo isto sem a mínima ironia – falta-me as veias poética, romântica e trágica para conseguir ilustrar tão grande saga.

Quanto aos autores, entendo que Ana Catarina Furtado tenha escrito este livro, pois viveu em Kiev, mas Miguel Urbano Rodrigues, ao que sei, não foi bolseiro na antiga União Soviética. Mas, enfim, cada um escreve o que quer e ao leitor cabe tirar conclusões.
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