14/11/2005
Dependência
Uma das bandeiras da esquerda portuguesa dos anos 70 consistia na promoção da emancipação do homem (leia-se proletariado - homem do povo). Era um movimento que pretendia retirar à direita alguma base de sustentação, minando a tradicional relação entre senhor e servo.
Quando era criança lembro-me, que na zona onde vivia havia dois condes. Um deles ainda o avistava de vez em quando. O outro, nunca lhe pus a vista em cima.
O conde habitava uma casa enorme, tinha vastos terrenos, tinha vida de burguês. Os que para ele trabalhavam habitavam casas modestíssimas, trabalhavam de sol a sol, verão ou inverno, chovesse ou não, geasse ou não, e não recebiam se não trabalhassem. Caso ficassem durante algum tempo sem trabalho, valiam-lhes as galinhas, os perus, os coelhos que iam criando.
Eu vivia com avós reformados, e, por essa via, tinha uma vida de mais qualidade do que os meus colegas da primária. A maioria deles (6 a 10 anos), vindos da escola (que só ocupava umas 4 horas por dia), trabalhava nas fainas da casa apanhando erva, alimentando os animais, mudando a cama dos animais, etc. Um trabalho que hoje seria absolutamente inaceitável, mas que era o dia a dia há cerca de 40 anos. O meu caso não ia além da pastagem de perus. Tendo presente a fome do tempo da guerra que nos era relatado pelos mais velhos, o meu trabalho e o dos meus colegas não passavam de uma brincadeira face ao que os anciãos contavam.
A vasta maioria dos meus colegas da primaria não passou da 4ª classe. Eu pertenci a um pequeno grupo de meia dúzia de bafejados que fizemos os exames de admissão à escola técnica e liceu (que corresponderia hoje a um exame de admissão no segundo ciclo do ensino básico).
Voltando à carga inicial, sentia-se muito directamente o peso da instituição “condes”.
Os condes não seriam parvos de todo. Penso não estar longe da verdade se disser que haveria uma deferência respeitosa destes face aos trabalhadores. Essa deferência não chegava evidentemente ao ponto de os tornar plenamente sensíveis face às dificílimas condições de vida dos trabalhadores da zona, mas esses trabalhadores sentiam-se, de alguma forma, que eram tratados com alguma deferência pelos condes. Talvez o sentissem por se lembrarem dos idos ...
Com o 25 de Abril espalha-se o vírus da emancipação do homem. Penso que muita gente ficou em pânico de ambos os lados da barricada. Os condes por razões óbvias. Mas também muitos trabalhadores sentiam que as novas ideias de emancipação os deixariam órfãos ... mais vale o diabo que se conhece ...
Os tempos passaram e nalguns casos mais noutros menos, a emancipação teve lugar e a influência dos condes esbateu-se.
Eram tempos em que uma direita mais ou menos caceteira queria perpetuar esta relação paternalista/exploradora com o trabalhador.
A esquerda, regra geral, acabou, nesta matéria, sendo bem sucedida, e, em abono da verdade também muita direita, mais ou menos burguesa mas mais civilizada, acabou por alinhar numa relação mais bem nivelada com a generalidade dos proletários de então.
Evidentemente que o filme que acima recordo espelha, se as minhas faculdades de percepção não falham (ou falharam) uma realidade local, bastante limitada no espaço e no tempo.
Mas suponho que seja suficiente para abordar problemas relativos à dependência.
Sou capaz de não estar muito baralhado se afirmar que a maioria da população de Portugal desenvolve alguma espécie de mecanismo de dependência, face a alguém ou a algo. Não sei se não será, simplesmente, um mecanismo semelhante à dependência que, desde tenra idade, todos tendemos a manter, durante pelo menos a menoridade, com nossos pais. A verdade é que me intriga a dependência que a maioria dos portugueses parecem demonstrar, e que me parece doentia, a futebol, telenovelas, reality shows e outros programas de elevada toxicidade, música pimba, chunga, de encher pneus ou penicos, até dependência religiosa face a alguns comportamentos que suponho serem algo aberrantes.
Depois do sucesso que a esquerda obteve na dinamização da auto-emancipação do proletário, suponho que aquilo que então se esperava vir a ter lugar, a evolução no sentido do assumir de uma identidade de cidadão, veio a revelar-se um processo frouxo.
Enquanto por um lado a generalidade da população se foi emancipando face às dependências reinantes no panorama pré 25 de Abril, por outro foi aderindo aos vários tipos de dependências já antes referidas. Se muito embora as implicações dessas novas dependências tenham pouca relação às anteriores, elas têm fortíssimas implicações indirectas no nível cultural de todo o país.
Por nível cultural não entendo saber quantos cantos têm os Lusíadas, mas cultura em relação a todos os campos das letras e ciências.
Estando consciente de que, apesar de tudo, o nível global cultural (médio) sofreu uma melhoria, suponho que não terá sido suficiente para que tenhamos podido acompanhar o ritmo (para já não falar em aproximarmo-nos) dos restantes países da Europa.
Voltando à dependência, suponho que a globalidade da esquerda, não sei se consciente ou inconscientemente, se tenha deixado lentamente escorregar para a dinamização de um mecanismo em que passou a defender a elevação do estado à posição de tutor do cidadão comum.
Para alguma esquerda sindical, especialmente após a queda do muro de Berlim, este mecanismo revelou-se capaz de auto-sustentar a promessa de um estado de coisas em que, por um lado, um estado cada vez mais omnipresente e “zelador” passa a poder justificar a sua própria dimensão, e por outro, promete e ensaia um cada vez maior papel de tutor do cidadão comum. Este comportamento é particularmente notório no ensino, (elevado a educação, tal a fúria tutorizante), segurança social, e para com os cidadãos mais desprotegidos. Este comportamento para com o ensino não é inocente. Ele pretende garantir a “sustentabilidade” do estado de coisas.
Tudo isto conduziu o estado a assumir uma relação paternalista para com o cidadão ao arrepio de uma saudável relação adulta, de cidadão emancipado, a caminho do exercício de uma salutar cidadania.
Tal como fazem os adolescentes mal criados para com os progenitores, temos todo um país a insultar o estado e a exigir dele, simultaneamente, tudo e mais alguma coisa. E os governos, venham lá de onde vierem, mesmo que se apercebam do problema, nem sabem para onde se hão de virar.
Suponho que o estado de coisas em França tenha algum grau de paralelismo com o que escrevo porque é exactamente ali que parece morar a mais infinita fé no estado social “à moda da Europa” – dizem os seus defensores embora suponha que uma boa parte dela não alinhe pelo disparate.
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