24/11/2005

A "informação" da RTP e a propaganda

Actualização: Posteriormente, este outro artigo veio acentuar o disparate abaixo analisado.



Nas estações de TV nacionais, a propaganda (neste caso anti-americana) atinge, por vezes, um pináculo de estupidez militante difícil de igualar. Suponho que alguns dos seus exercitantes pertençam a um grupo de eleitos entre os mais aguerridos niilistas nacionais ou, quem sabe, pela acção da globalização, mundiais.

Vejamos esta peça, aparentemente produzida pela batuta de Graça Andrade Ramos, jornalista da RTP, sobre “a luta”, nos Estados Unidos, entre a teoria científica desenvolvida por Charles Darwin que explica a evolução das espécies (evolucionismo) e um dogma (religioso) que defende que as espécies surgiram tal qual as conhecemos hoje após terem sido criadas pelo Criador, (criacionismo).

O áudio da peça (emitida às 22 horas de 16 de Novembro de 2005) pode ser aqui escutado.

Repare-se como, a propósito de uma exposição evocativa dos 150 anos da elaboração da teoria da evolução, se difunde propaganda que mais não pretende que remeter o estado norte americano da Pensilvânia, e os americanos em geral, para as calendas da Idade Média.

A peça começa por fazer crer que a teoria da evolução necessita de defesa face ao criacionismo, aproveitando para propagandear que haja rejeição a esta teoria por largas camadas da população americana . Diz o jornalista pivô (em estúdio) na fase inicial da peça:
Uma exposição sobre Darwin vai abrir em Nova Iorque. O objectivo é defender a teoria da evolução elaborada pelo cientista há 150 anos e que continua a ser rejeitada por largas camadas da sociedade americana.
Já que a jornalista (suponho que também esta fase inicial da peça seja da autoria de a jornalista) se imbui em educadora da classe operária, podia ter esclarecido que, qualquer católico que siga a Bíblia à risca, terá que rejeitar necessariamente a teoria de Darwin porque esta transforma implicitamente numa falsidade tudo o que a Bíblia defende neste campo. No entanto, na Europa como nos Estados Unidos, a percentagem de pessoas que segue por essa via é residual. Aliás, muito menos residual na Europa como nos Estados Unidos é a percentagem de pessoas que desconhecem tanto a teoria como o dogma e esse assunto escapa à jornalista.

Avança então a jornalista:
Em 1850, Charles Darwin publicou ‘A Origem das Espécies’. A sua teoria postula que toda a vida evolui graças a um mecanismo de selecção natural e está em constante mudança.

Numa exposição que levou 3 anos a preparar os visitantes podem acompanhar a própria evolução dos estudos e da teoria de Darwin, depois da sua visita às ilhas Galápagos.
Um entrevistado intervém:
The theory of evolution by natural selection, Darwin’s theory, is only a theory. I would say that it’s a theory that is testable in many ways, is based on observations. A huge wealth of material has been gathered over the 150 years since it was published.

(Tradução)
A teoria da evolução por selecção natural, a teoria de Darwin, é apenas uma teoria. Eu diria que é uma teoria, baseada em observações, testável de muitas maneiras. Uma vasta riqueza de materiais tem sido recolhida desde que a teoria foi publicada, há 150 anos.
A jornalista entrega-se agora, de viva voz, ao exercício do disparate absoluto:
Mas a contestação continua. Alguns consideram a teoria da evolução insuficiente por não explicar toda a complexidade da origem da vida.
Isto pode ser dito sobre toda e qualquer matéria científica. As únicas teorias que explicam tudo e mais alguma coisa são as explicitadas, por exemplo, na Bíblia. Para fundamentar o disparate a jornalista referiu a insuficiência, em abrangência, da teoria da evolução, para lhe lançar uma mancha que lhe permitirá projectar-se para o mundo do absurdo, continuando:
Nos Estados Unidos há mesmo estados que recusam ensiná-la nas escolas. Na Pensilvânia, por exemplo, prefere-se o criacionismo, que se baseia literalmente na descrição bíblica da criação do mundo.
Se a peça acabasse aqui eu diria que a jornalista estaria a propagandear o criacionismo. Entretanto, a história da Pensilvânia é falsa.

As escolas e universidades dos Estados Unidos têm uma flexibilidade acima do que estamos habituados. Nas zonas em que algumas delas estão situadas há uma larga faixa de habitantes (estudantes) que, por via da educação religiosa, são postos perante o choque da existência da teoria da evolução. Nesse contexto surgem reacções e, para evitar criar “matérias tabu”, essas escolas decidiram que, além de ensinarem a teoria de Darwin, explicariam também, especialmente aos alunos que nada sabem de criacionismo, que biblicamente, se defende que as espécies teriam sido criadas espontaneamente.

É claro que o parágrafo anterior nunca daria jeito para se poder sugerir que os estados unidos estão de tal forma pejados de imbecis que, pelo menos num estado, a Pensilvânia (mas depreende-se que haverá outros), não se ensina, de todo, o evolucionismo nas respectivas escolas.

A peça continua, e é o fim da peça a única coisa que leva a concluir que a jornalista não propagandeia simplesmente o criacionismo. Nessa altura uma outra entrevistada explica:
Darwin’s theory of evolution is the only scientific explanation for the diversity of life on earth, as we know it today. These other theories are reactions, social non-scientific reactions.

(Tradução)
A teoria da evolução de Darwin é a única explicação científica para a diversidade da vida tal como a conhecemos hoje na Terra. Essas outras teorias são reacções, reacções sociais não científicas.
Na eminência de que este último depoimento pudesse pôr em causa toda a manobra de propaganda, a jornalista apressa-se a abafar o esclarecimento prestado pelo entrevistado.

É claro que se poderia argumentar que, se fosse o caso, a entrevista podia ter sido, simplesmente eliminada. Mas já dizia António Aleixo:

P’ra mentira ser segura
E atingir profundidade
Tem que trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.

... e continua a jornalista à carga:
A mostra também inclui a controvérsia, tentando esclarecer os hesitantes.
Esta frase é lapidar. Parece dela saltitar: “mas a mostra jamais conseguirá esclarecer os estúpidos dos americanos, de tal forma que, até na exposição o criacionismo está presente”.

Finalmente a jornalista remata com pura informação:
A exposição abre sábado, dia 19, em Nova Iorque. É já uma antecipação das comemorações do nascimento de Darwin em 2009.
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Vejamos o que nesta peça é informação:
Uma exposição sobre Darwin vai abrir em Nova Iorque.

Em 1850, Charles Darwin publicou A Origem das Espécies. A sua teoria postula que toda a vida evolui graças a um mecanismo de selecção natural e está em constante mudança.

Numa exposição que levou 3 anos a preparar os visitantes podem acompanhar a própria evolução dos estudos e da teoria de Darwin, depois da sua visita às ilhas Galápagos.

The theory of evolution by natural selection, Darwin’s theory, is only a theory. I would say that it’s a theory that is testable in many ways, is based on observations. A huge wealth of material has been gathered over the 150 years since it was published.

(tradução)
A teoria da evolução por selecção natural, a teoria de Darwin, é apenas uma teoria. Eu diria que é uma teoria, baseada em observações, testável de muitas maneiras. Uma vasta riqueza de materiais tem sido recolhida desde que a teoria foi publicada, há 150 anos.

A exposição abre sábado, dia 19, em Nova Iorque. É já uma antecipação das comemorações do nascimento de Darwin em 2009.
Tudo o resto, ou é pura propaganda, ou depoimentos resultantes de perguntas que pretendem levar os especialistas a falar do criacionismo por forma a dar “um cunho científico” à “luta” entre evolucionismo e criacionismo.

O facto de ela ser anti-americana é apenas um pormenor. Este método é frequentemente usado nos mais variados meios de comunicação social para “defenderem” os mais diversos “pontos de vista”.

Um belo exemplo da mais pura propaganda.

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