24/05/2007

O primado da pedagogice

Gabriel Mithá Ribeiro
«Jornal de Letras/Educação», quarta-feira, 21 de Janeiro de 2004, pp.6-7.


1. «Pedagogice» - se exceptuarmos algumas vozes críticas pontuais, a educação tem vivido nas últimas décadas algo semelhante a uma «paz podre» que sobrevive debaixo do chapéu da pedagogia. Se ela é ou não romântica, é uma questão de rótulo. A verdade é que as correntes pedagógicas dominantes têm produzido resultados nefastos. É risível falar-se em exigência no ensino básico quando não há exames nacionais em final de ciclo (4º, 6º e 9º anos), quando existe um sistema de classificação feito à medida do facilitismo que permite a adulteração dos resultados escolares (os níveis de 1 a 5), quando os mil e um álibis para o não cumprimento de programas se escudam nos chavões dogmáticos das «flexibilidades» ou dos «problemas sociais», quando a dimensão burocrática faz submergir a escola numa montanha de papéis que a tornam ineficaz em muitos domínios (particularmente na avaliação e na gestão de processos disciplinares), quando a formação contínua dos professores ao longo da carreira tem um enquadramento legislativo que lhes permite exercerem a profissão mais de três décadas sem serem obrigados a regressar à sua área científica ou académica de origem, etc., etc., etc. O que sobra? A marginalização do conhecimento, o aumento da indisciplina, a desmotivação do corpo docente, o histerismo da escola, as confusões e absurdos curriculares e, em última instância, um débil projecto de sociedade. Onde pode estar a raiz do problema? Por um lado, na forma lunática como as correntes pedagógicas dominantes têm olhado para a realidade escolar e social, por outro lado, no peso inconcebível que o «lobby» das pedagogias/ciências da educação tem tido junto dos espaços de decisão política. Um dos nossos grandes equívocos é considerar que o desastre do ensino é um problema pedagógico. Não é. É um problema político como sempre foi e será. Simplesmente rotularam-se as políticas educativas de «ciências da educação» e deu-se-lhes um inacreditável enquadramento institucional com «laboratórios» em universidades e em escolas superiores de educação. É isso que tem servido para que se espraiam ideologias que, com o rótulo de «ciências», têm adormecido diferentes campos políticos. Portanto, não é a ciência que está em causa, mas um sistema ideológico que se produz e reproduz mesclando acriticamente determinadas concepções do homem com a sua aplicação institucional directa pela mão do estado. Se isso não é ideologia, então o que será? Tal como aconteceu com o socialismo (no sentido que aqui o uso), a educação só poderá ser livre e verdadeiramente discutida quando deixar de ser «científica».

2. «Consumice» - neste ponto limito-me a sublinhar que as concepções de «criatividade» e de «prazer» ganharam no nosso ensino a dimensão de consumo imediato, transformando os professores numa espécie de merceeiros que devem disponibilizar uma gama vasta de opções para os clientes-alunos se servirem, tendo em conta que o cliente tem sempre razão. Mas esses seres são inconfessadamente concebidos como possuindo múltiplos e ricos interesses inatos, mas de curta inteligência. A esses pobres coitados não podemos exigir muito. Temos de facilitar, simplificar, aligeirar. É o ensino centrado no aluno.

3. «Sociologice» - os contextos sociais para terem a mínima objectividade nas decisões sobre o ensino devem sobretudo estar relacionados com a dimensão material da nossa existência. Na escola eles devem prender-se a questões orgânicas e não entrarem avassaladoramente pela sala de aula como tem acontecido. Na essência, o domínio da acção social da escola deve ter a ver com apoios inequívocos a alunos carenciados – por exemplo, alimentação, vestuário, material escolar, transportes, adequação de horários, campanhas de saúde/higiene. Mas porque a gestão das políticas de educação tem sido um desastre que tudo confunde, não somos capazes de avaliar com rigor aquilo que poderíamos e deveríamos avaliar - os ditos «contextos sociais» -, tentamos agarrá-los pelo lado supostamente mais fácil, o «psico-cultural». Acabamos, assim, por agir sobre realidades inventadas a partir do que supomos serem esses contextos psico-culturais, cujo chavão tem sido «os interesses dos alunos». Ninguém poderá dar-lhes conteúdo credível ainda por cima sempre medidos pela bitola facilitista. É a retórica oca que tem de ser desmistificada. Isso tem tido consequências ruinosas, dado fazermos depender o rigor científico e as exigências curriculares desses falsos universos mentais que imaginamos corresponderem à realidade. Desse modo desvalorizamos a escola, pois tendemos a negar-lhe dimensão científica e institucional. Essas são naturalmente exigentes. A esmagadora maioria das aprendizagens dos alunos no ensino básico (e não só) é de saberes universais (com «variantes» nacionais, por exemplo, concretizações específicas em domínios como a Literatura, a História, a Geografia, etc.). É a universalidade que é intrínseca ao conhecimento científico e se isso não tiver implicações pedagógicas e didácticas, então para que serve o conhecimento científico na escola? Os casos em que não é assim, que sem dúvida existem, ou seja, aqueles em que a inserção social concreta das escolas (de cada escola) tem significado relevante nos domínios pedagógico e didáctico (e, com muitas reticências, científico), são meramente residuais, jamais justificadores do atomismo pedagógico em que vivemos, como se para cada localidade, para cada turma, para cada aluno tivéssemos de inventar uma ciência, um programa, um método, uma pedagogia ou uma didáctica. Os nossos pedagogos têm subvertido esta lógica e, no limite, têm apontado para uma escola construída em função de supostas pertenças sócio-económicas, culturais e até étnicas[2] de conjuntos segmentados de comunidades escolares ou de alunos, com implicações no que se consideram ser as capacidades e potencialidades intelectuais de cada um deles. Os ideólogos de sistemas como as sociedades de ordens ou de castas, do «apartheid» ou de regimes similares bem se podem rir destes actuais ataques de «sociologice». Esta questão da relação entre a escola, a família e a sociedade tem de ser repensada de raiz. Atrevo-me a dizer que a escola começa onde a família acaba.


Gabriel Mithá Ribeiro

[1] O título original do artigo era «A escola “ice”».
[2] Frase destacada pelo «JL/Educação».