29/03/2005

Especulação analítica

Os programas sobre a vida selvagem, chamados de “documentários”, têm passado por várias fazes.

A última fase inclui a dramatização da coisa.

O ruído já raramente é natural. Chegámos ao ponto em que até os peixes fazem “blops” cada vez que abrem a boca, como se, naquelas circunstâncias o ruído existisse.

As imagens são frequentemente conseguidas em estúdio (especialmente para as espécies mais pequenas) sem que isso seja mantido claro.

Pode ser razoável a artificialização do processo, mas deve haver honestidade. De outra forma a fronteira entre o documento e a invenção esbate-se de tal forma que se pode passar a chamar o que se quiser ao que se quiser.

Hoje, 27 de Março, a SIC exibiu um programa sobre vida natural, a que chama, como é da praxe, documentário. Suponho, aliás, que esse termo já lhe é atribuído pela BBC, produtora original do programa.

A determinada altura (parece-me que numa anterior circunstancia já o tinha feito, mas eu não estava muito atento), um babuíno está a preparar-se para deitar a luva a um flamingo, a imagem é parada e é dita a seguinte frase: “Vamos analisar o que poderá ter acontecido para se chegar a esta situação”.

Esta frase é, aliás, muito usada nos nossos meios de comunicação social em programas (supostamente) de informação. De cada vez que algo acontece em que nada se sabe sobre o que tivesse na origem de determinado desfecho, para manter as audiências especula-se a torto e a direito.

Voltando à bicharada, não parece razoável que “se analise o que possa ter acontecido”. Podem analisar-se cenários. Hipóteses. Mas deve ser claro, em cada caso, que se está no campo da mera hipótese.

Pode dizer-se “vamos analisar o que aconteceu” ou “vamos tentar descobrir o que pode ter acontecido”. Declarar-se que se vai analisar o desconhecido parece-me, pura e simplesmente, desonesto.

Não sei se a “bucha” foi impingida na tradução da locução original para português ou se já existia no original. A ser o primeiro caso, não abona a favor da SIC. A ser o segundo, não abona a favor de ambas. Da BBC porque tem responsabilidades, até históricas, na produção de informação isenta (será que se mantém?), da SIC por estar pouco atenta ao que emite.