14/04/2005

O irresistível inimigo de estimação

Ter visto parte do programa Clube de Jornalistas de 12 de Abril, deu-me vontade de voltar a cascar na postura, nesta matéria, da generalidade dos jornalistas.

Pela forma como abordam o assunto, percebe-se, mais ou menos facilmente, que têm uma polarização prévia sistemática contra os Estados Unidos da América.

No caso da guerra do Iraque isso tornou-se particularmente patente.

Havia informação disponível de várias formas:
- Directamente das forças americanas (embedded* ou em conferências de imprensa)
- Livremente no terreno
- Junto às forças opositoras aos americanos, difusamente enquadradas numa aparente miríade de organizações.
Junto às forças americanas os jornalistas estão perante o inimigo de estimação a partir de quem, de uma forma ou outra, são obrigados a noticiar (nem que seja com reserva mental) aquilo que lhes é transmitido ou directamente observado caso estejam embedded.

Evidentemente que a informação assim obtida é parcial, e disso eles não se arrogam a chamar a atenção, como se alguma informação fosse absolutamente isenta e como se a primeira parcialidade (de análise) não partisse dos próprios jornalistas.

Não lhes importa que estejam perante uma força militar globalmente respeitadora das regras da guerra, provavelmente a mais respeitadora do mundo (em ambiente de guerra, volto a frisar). Já se sabe que vozes se levantarão acerca da escandaleira nas prisões iraquianas (inaceitável), mas essas vozes esquecem-se as escandaleiras que continuam a assolar as nossas próprias esquadras onde fora de um ambiente de guerra, nos deparamos com inqualificáveis atropelos aos direitos humanos. Nas prisões os suicídios sucedem-se, a droga campeia, e nenhuma daquelas reclamantes almas parece perceber que, tendo em atenção as circunstâncias, o caso é muito mais grave entre nós do que no Iraque. Também não adianta lembrar que há dois anos atrás essas mesmas almas se recatavam de dizer o mesmo e no mesmo tom das atrocidades cometidas por Sadam e seus capangas.

Já agora, e para se ter uma noção das proporções de que falo, chamo a atenção para o facto de morrerem, todos os anos, nas nossas estradas, pertencentes a um país com 10 milhões de habitantes, mais pessoas por ano do que militares americanos no Iraque desde o início da guerra (há mais de 1 ano). No entanto isso não é suficiente para que os jornalistas percebam que não faz qualquer sentido polarizar o verbo de forma a dar a entender que a cada soldado morto corresponde um passo final para a derrota americana e da sua política.

No terreno, livremente, podem também os jornalistas obter informação. Evidentemente que correm riscos mas, caso a coisa corra mal, não se coíbem de culpar os americanos pela protecção que não lhe facultam, nunca se lembrando de reclamar o mesmo da outra parte que, essa sim, considera um jornalista não mais que um saco de dólares (ironias) com pernas.

Junto à população recolhem depoimentos que exibem como sendo verdadeiros, fazendo crer que não sabem que, dizendo o que dizem (o que fica gravado), escondem a verdade por amor à pele. Querem fazer crer que não sabem que cada palavra dita por um iraquiano aos microfones e perante as câmaras pode significar a sua sentença de morte, não à mão dos americanos mas à mão daqueles que os jornalistas tentam subrepticiamente elevar à posição de heróicos resistentes ao porco imperialista.

Cada iraquiano sabe, melhor que ninguém, que uma declaração imprevidente chegada ao conhecimento dos capangas cortadores de cabeças, lhes pode dar, e a toda a família, a suprema graça de uma execução sumária em nome de Alá. Mais. Os jornalistas fazem o favor de se esquecer que para que os iraquianos alcancem os céus por essa via, não basta uma declaração neutral, basta que não seja a favor dos zeladores oficiais do status quo que elevou o Iraque à classificação de estado-pária, estado-personalidade – um estado fora do contexto de convivência internacional, mais parecido com uma coutada privada do seu dirigente máximo e respectiva família do que com um país real.

Em contactos directos com os “heróis” muçulmanos, os jornalistas percebem que estariam em terreno muitíssimo perigoso. Recorrem então a prestadores de serviços de jornalismo, “locais”, que lhes facultam o material que, naturalmente, lhes parece (porque a pele aos próprios pertence) demasiado arriscado obter.

Não lhes interessa que esses “jornalistas” locais sejam um braço armado da respectiva máquina de propaganda. Essa qualidade é convenientemente esquecida, tanto mais que o material é anti-americano. Põem em causa a validade da informação recolhida pelas equipas embedded, mas não têm escrúpulos em aceitar a informação oposta só porque terá sido recolhida por “jornalistas”.

Depois admiram-se que, com o passar do tempo, a realidade se imponha, e se perceba finalmente, que todo este disparate pseudo-jornalístico não passava de uma colecção de cruzadas pessoais anti-americanas. As eleições no Iraque deixaram essa maralha em estado de choque. Não lhes vai servir de emenda - percamos a esperança.

Há ainda a faceta das vítimas da comunicação social.

Em primeiro lugar essas vítimas acontecem por haver, apesar de tudo alguma confiança nas tropas americanas. A generalidade dos jornalistas ocidentais acompanham, de uma forma ou outra, as movimentações das tropas americanas, a quem, volto a lembrar, reclamam responsabilidades quando algo corre mal. Mas nem se atrevem a tentar acompanhar a outra parte. Nesse caso ficam no hotel. Evidentemente que quando a generalidade deles acompanha o lado americano, a haver molho, é do lado americano que morrem.

Qualquer operador de câmara está farto de saber que, à distância, uma objectiva sobressaindo de uma esquina se parece com uma bazuca, e que um cinto de baterias parece um cinto de granadas. No calor da batalha, volta e meia, são atingidos, por uma ou outra parte.

Todos sabem, quando estão em directo, que, estando a revelar posições ou movimentações de tropas, no mínimo se expõem directamente à fúria dos soldados visados, que nesse mesmo momento têm o pescoço no cepo. Admiram-se que os soldados percam a cabeça e lhes dêem canhonadas.

Resumindo, acham a guerra pérfida (como se lhes estivesse reservada a capacidade de percepção de que uma guerra é sempre isso mesmo - pérfida), mas querem trabalhar como se estivessem a recolher material num centro comercial em Paris.

PS.
José Manuel Fernandes tem razão: o Tribunal Internacional para o Iraque não foi mais do que uma variação dos tribunais plenários do regime Salazarista.

José Manuel Fernandes opina normalmente “fora do penico”. Por um lado, como jornalista, devia abster-se do comentário. Por outro, e ainda em relação ao Iraque, coleccionou uma tal quantidade de predições erradas que lhe deviam aconselhar a ausência de voto (idóneo) na matéria. De qualquer forma, no ponto inicial, e em minha opinião, ele tem razão. Juntar, a dedo, numa sala, um molho de pessoas cujas posições prévias são conhecidas e maioritariamente convergentes (no sentido que os proponentes pretendem – só aqui não há parvoíce), e chamar a este grupo um tribunal, não cabe na cabeça de um tinhoso.

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* O termo embedded significa embutido – jornalista que acompanha os combates integrado na força militar em causa.