27/12/2005

Deixa lá


No Jornal da Madeira, Serafim Marques faz um excelente diagnóstico de um dos cancros que nos mina.
Deixa lá

Quem se demitir, mesmo no seu simples papel de cidadão anónimo, acabará por poder vir a ser vítima do seu próprio “deixa lá”. Este é um esforço individual e colectivo e não apenas do Governo. Ou vamos esperar que venha alguém para pôr termo a esta bagunça? Se, nos nossos papéis, optarmos pelo “faz de conta” ou pelo “deixa andar”…

O nosso filho, ainda pequeno, porta-se mal e nós não conseguimos educá-lo? Atenuamos a nossa mágoa, com o desabafo: “Deixa lá, quando for crescido vai aprender com a vida”. Depois, já adolescente, aliando a rebeldia com a má educação, voltamos a repetir, perante a nossa impotência em exigir dele comportamentos e hábitos adequados, quer seja de comportamento, de estudo, de educação, etc: “Deixa lá, na escola vai aprender a ser educado e respeitador”. Mais adiante, diremos que será (era, quando ela foi, de facto, uma “escola de homens”) a tropa que fará dele um homem. E se mesmo assim continuar a portar-se mal, diremos que será o “patrão” e pô-lo na linha. Nalguns casos, ficaremos até à espera que seja o casamento que fará dele um homem ou, na outra situação, uma mulher.

Concluiremos, assim, que nas várias fases da educação e da socialização do ser humano e perante a nossa inabilidade ou comportamentos do “deixa andar e não te rales”, acabamos por optar pela atitude do “deixa lá”. Ficamos, assim, à espera que sejam os outros a desempenharem os nossos deveres e obrigações, substituindo-nos nas nossas funções de educadores perante os nossos educandos.

Na sociedade e face a situações de falta de civismo, reagimos: “não há ninguém que faça nada contra isto?”. Arranjamos um ‘bode expiatório’, podendo subir até ao “Governo” ou mesmo até ao Presidente da República, em vez de agirmos e “denunciarmos”, mesmo que seja com uma simples palavra de reparo ou de crítica. O nosso comodismo, leva-nos a, mais uma vez, desabafarmos: “Deixa lá, um dia vai pagar os erros”. Na vida comercial, se formos mal atendidos, por exemplo, ao balcão ou pelo telefone, voltamos a refugiar-nos no nosso comodismo e: “deixa lá, nunca mais cá volto ou compro este bem ou serviço”. Em vez de exigirmos os nossos direitos e denunciarmos as situações incorrectas, corrigindo, assim, os erros dos diversos agentes e cidadãos, “calamos e consentimos”, este outro típico comportamento português.

Mesmo nas instituições, sejam empresas ou outro tipo de organismos, também aí e perante comportamentos de falta de apego ao trabalho, da falta de ética, de comportamentos incorrectos ou mesmo de “real dolo ou prejuízo”, intencional ou por desleixo e omissão, também mais uma vez, dizemos: “deixa lá, pode ser que venha a ser punido”. Ou então, quando a empresa falir, vai conhecer também os “amargos” dos seus comportamentos, consolo de refúgio que encontramos perante a nossa incapacidade para “educar” os maus trabalhadores. Depois, vemos, por esse país fora, muitos trabalhadores a gritarem, porque lhes vai faltar o rendimento de trabalho e, com ele, as suas vidas e das suas famílias, podem atingir situações de verdadeiros dramas. Culpam o “patrão”, mas não olham em redor para, dentre o grupo de colegas trabalhadores, encontrarem alguns deles, qual Judas que traiu Cristo, que contribuíram, com as suas atitudes e os seus comportamentos, para a falência ou para a deslocalização da empresa, para países onde a “mão-de-obra” é mais aplicada e não apenas mais barata do que a nossa. Assim, não evoluímos e não contribuímos para que, também na vida económica, se separe o trigo do joio”.

Os cidadãos mais conscientes e lúcidos, dizem que a sociedade e as suas instituições estão em crise. Os mais optimistas, contrapõem dizendo que sempre foi assim e mesmo no “caos social” a sociedade evoluiu. Não creio que tenham razão, mas, num país pluralista, teremos que aceitar as suas teses. Contudo, verificamos que alguns países evoluem (muito) mais do que nós, portugueses. Por que será?

Os professores, por estarem quase permanentemente em conflito com tudo e com todos, desde há cerca de trinta anos, esquecendo aqueles que são a sua razão de existirem — os alunos, queixam-se de que estes vêm mal-educados das famílias e os educadores (pais) queixam dos “mestres” que se demitem também dos seus papéis de formadores e de educadores. De parte a parte, as acusações crescem e a vida de algumas escolas é um autêntico inferno. Muitos, pensarão ou dirão: “esforçar-me eu?” Deixa lá que alguém virá atrás e fechará a porta mas, tipo bola de neve, que na minha opinião, pessimista, o problema vai crescendo, e a nossa sociedade anda já à deriva e à espera do surgimento de líderes (não esperemos por um qualquer D. Sebastião) e que conduzam este barco para bons portos. Mas, acima de tudo, precisamos de pessoas que não se demitam dos seus deveres e das suas obrigações e reivindiquem também pelos seus direitos. Como cidadãos, pais, educadores, professores, dirigentes, colegas, polícias, juízes, etc., temos o dever de exigir aos outros atitudes e comportamentos adequados, se pretendemos evoluir, como país e possamos melhorar a nossa qualidade de vida em sociedade. Quem se demitir, mesmo no seu simples papel de cidadão anónimo, acabará poder vir a ser vítima do seu próprio “deixa lá”. Este é um esforço individual e colectivo e não apenas do Governo. Ou vamos esperar que venha alguém para pôr termo a esta bagunça? Se, nos nossos papéis, optarmos pelo “faz de conta” ou pelo “deixa andar”, será muito cómodo, mas se não estivesse em causa a nossa própria sobrevivência como povo e como nação independente.

SERAFIM MARQUES
Economista